I
um dia direi aos filhos que não terei
cheguem mais perto
vovô vai contar uma história
e mesmo com toda distração lá fora
olharão com curiosidade minhas rugas
à espera das palavras deste velho
e direi a eles
o mundo em 2019 estava estranho
muito estranho
caminhando pra trás
amordaçado
de olhos vendados
em fila
na direção do pior
do abominável
II
a américa queria ser grande de novo
não pela poesia de whitman
williams e ginsberg
mas pelo ódio de quem perdeu seus escravos
perdeu seu direito de assediar mulheres
de importunar mulheres
mulheres que gostam de mulheres
melhores mulheres
melhores amigas
melhores histórias
perdeu seu direito de espancar homens
homens que gostam de homens
amigos namorados pais filhos amantes
a américa queria ser grande de novo
e trumpeçava nas próprias escolhas
III
os latinos queimavam
seus anos inteiros em dias tensos
o chile ia às ruas
acertar as contas com a história
a venezuela respirava
com ajuda de aparelhos e crendices
a bolívia via a queda pela força
e a ascensão do mal
enquanto patti smith dedicava
cada corda arrancada da sua guitarra
a borges neruda ativistas e desaparecidos
IV
a europa se vestia de lobo mau
colocava seus olhos grandes
na síria na coreia do norte
velho mundo velhas práticas
aurora de um novo dia morto pra refugiados
rimbaud não foi pra áfrica à toa
artaud não foi pro méxico à toa
V
notícias vindas de todas as direções
não eram boas
não mesmo
e o brasil caprichava no seu câncer
óleo nas praias
riqueza entregue
natureza em apuros
amazônia em chamas
índios massacrados
milícia institucionalizada
escândalos desavergonhados
fake news fake news fake news
professores vigiados
educação asfixiada
teatro pra igrejas
cinema pra capachos
calúnia à ciência
à arte
aos artistas
aos arteiros
aos articulados
os canalhas não suportam
viva a censura a tortura a ditadura
democracia não leva ninguém a nada
volta ai-5
volta pro armário
volta pra senzala
volta pra cozinha
fascismo representado
tiro na cara na cabecinha
faz arminha com a mão
militares limitados
favelas sitiadas
máscaras no chão
VI
em meio a tanto desgosto profundo
havia o Flamengo no mundo
sim, o Flamengo
não o flamengo elite
o flamengo do ingresso branco
o flamengo da camisa de duzentos reais
o flamengo das bombas e pedras
o flamengo do presidente bufão
o flamengo do governador déspota
o flamengo de assassinos com assinatura
o flamengo de milhões vivos
o flamengo das famílias em luto
não era esse flamengo
não, não era
VII
era o Flamengo vermelho temido
era o Flamengo preto eminente
o Flamengo de Marielle presente
o Flamengo de Stuart Angel
o Flamengo do grito alto
do berro escancarado
da boca que falta dentes
do suor que nunca deve faltar
o Flamengo do moleque bobo
bobo como qualquer moleque
pendurado na janela da sala
comemora o gol de falta do Pet
não adiantou o pai chamar-lhe a atenção
já não era ele
era outra coisa
era o Flamengo
VIII
era o Flamengo de 1981 no século XXI
do goleiro gordo na infância
dos laterais que a europa não quis
do zagueiro de condomínio
e seu companheiro de segunda divisão
do meio campo lento e indolente
do ataque duvidoso e mimado
do português
quem esse português pensa que é?
era o Flamengo
o Flamengo que joga toca dribla chuta
o Flamengo pra frente pro gol
pra torcida pra sua gente
que sofre e sofre e sofre
e apanha e apanha e apanha
dores agudas lesões sérias
fica de pé
até o final
e vira outra coisa
não era mais aquilo
era o Flamengo
IX
é o que direi aos filhos que não terei
os olhos fecham
o coração para
sentado na poltrona
o mundo seguirá pra algum lugar
e ouvirei os mais jovens dizendo
vovô tá dormindo
sonha o sonho eterno do futebol poesia
do futebol inclusão
do futebol mais do que futebol
não era pra ser diferente
não era
era o Flamengo
Dio
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